terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Cento e oitenta e oito


Eu gosto de palavras, sempre gostei. Gosto de escutar palavras, escrever palavras, ingerir palavras e incorporá-las ao meu ser.
As palavras são fascinantes. Não simplesmente pelo significado que carregam, mas pela imensidão por detrás do que aparentam ser. As palavras têm o dom de dizer o que não consigo. Elas, de repente, arrancam de mim o que, sozinha, eu jamais teria capacidade de expressar. Não sou eu que digo nada. São as palavras que entram em mim, fazem um tour pelo meu corpo, dilaceram meu coração, fazem incisão em todos os meus órgãos, procurando com avidez o que eu luto para manter no meu esconderijo. E aí, depois de me vencerem, elas saem, levando consigo o que eu não tenho coragem de dizer por conta própria.
Eu gosto de te ouvir enquanto coleciono palavras. Sua voz é muito fácil de desmembrar. Antes mesmo de você ir embora, eu já colecionava essas palavras. Estúpidas. Desesperadas. Viscosas. Essas palavras que eu sabia que deixaria de dizer. Tenho, hoje, tantas delas guardadas que, me pergunto, com uma certa surpresa, sobre o que conversávamos.
Mas que tolice a minha... Nós não conversávamos.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Três coisas difíceis


3 coisas difíceis sobre a vida:
1- o sentir
2- o não-sentir
3- o sentir mais ou menos
O sentir é difícil pelo medo que o envolve de, um dia, não se sentir mais. O sentir é bonito, porém perecível. O sentir não pode ser doado em feiras de caridade, como um saco de arroz ou uma lata de leite em pó, o sentir precisa ser consumido na hora. O sentir começa à partir do estímulo de um terceiro, mas é intransferível. Ele pode ser recíproco e compartilhado, mas é indivisível. O sentir enche a barriga e satisfaz a fome, mas é sempre arriscado de se guardar na geladeira quando sobra um pouco do sentir depois do jantar; alguém pode comer o seu sentir por engano ou, se você esquecê-lo por tempo demais, o sentir pode facilmente se estragar. E, então, você não sente mais.
O não-sentir é difícil, pois não tem um prazo determinado de validade, ele é resistente às traças e aos cupins, pode ser congelado ou colocado em um tabuleiro de assar, pode ser usado como isca para a pesca ou como capa de chuva. O não-sentir é versátil e você o encontra em qualquer lugar. O não-sentir carrega o sentir nos braços por toda a extensão do amor ou da vida. O não-sentir, muitas vezes, instala-se em um determinado local por tanto tempo que se confunde com o sentir. O não-sentir se mistura com o sentir quando sai da boca das pessoas, as pessoas falam e você não consegue diferenciar se aquilo é sentir ou não-sentir. O grande medo que paira ao redor do não-sentir é exatamente o de se passar a vida pensando que o não-sentir é sentir. O não-sentir é o disfarce, o sentir é o espetáculo (ambos uma mentira).
O sentir mais ou menos é o caminho do meio, é difícil seguir o caminho do meio. É difícil sentir mais ou menos quando o sentir está fresco e a preço de custo. É difícil sentir mais ou menos quando o não-sentir já se alastrou e se solidificou pelos caminhos por onde o sentir costumava passar.
O sentir mais ou menos é difícil de ser explicado pois eu acabei de inventá-lo. Não existe sentir mais ou menos.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Suco de gente


Dizem que se você andar na rua olhando para as costas de uma pessoa por tempo o suficiente, ela, eventualmente, vai se virar para te olhar. O que aconteceria? Como as outras pessoas sentiriam nossos olhares sem nos ver? Alguma radiação sairia do fundo das pupilas (dilatadas pela sombra das cabeças) para o corpo do outro ou o quê?
Imagino que a presença de um estranho colado na sua traseira incomode ou, no mínimo, instigue a curiosidade, ou qualquer coisa que deixe de fora a filosofia e a psicanálise. Acho difícil opinar pois, desde que li essa teoria, tenho me sentindo um tanto quanto invisível. Passo o dia encarando nucas e ninguém nunca sentiu a necessidade de olhar para trás - e me ver ali.
Observei junto com isso o limpar de lágrimas com o polegar. "Não fique assim, vai dar tudo certo" e você vai e entrega sua mão como pára-brisa de rostos tristes, mostra-se próximo, mostra-se sem receio de contarminar-se com os sentimentos alheios. Apenas mostra, pois quando o outro menos espera, lá está você pondo-se a esfregar de volta os dedos enlagrimados nas costas do mesmo indivíduo cujas lágrimas acabou de limpar. Devolve esse suco de sentimentos antes que suas próprias mãos os absorvam e cria um círculo de tristeza em volta da pessoa que não consegue ver para onde suas lágrimas escoam. Invisíveis são as lágrimas, invisíveis são os pequenos gestos - se vistos com uma lupa podem até mesmo ser inexistentes.
A tristeza e a compaixão forçada que frequentemente nos sentimos obrigados a unir em uma mesma cena, para mim, são o mesmo que o despreocupado que sai pelas ruas e o outro que vai encarando seu pescoço por trás, o de trás é lágrima e o da frente é polegar.
Se a lágrima te encara por tempo demais você se sente impelido a limpá-la com esse mesmo polegar. Talvez, então, eu não seja invisível, apenas não tenho lágrimas, ou nunca consigo me fixar na mesma nuca pelo tempo que é preciso para que ela olhe para trás e me veja ali. Quando ela se vira eu já não mais estou, fui atrás de outro pescoço, persegui outro transeunte sem rosto até a porta de casa, encarei outro polegar por mais de um segundo, esperando que ele entendesse e pegasse um colírio e me criasse lágrimas, para depois limpá-las.
O tempo suficiente de cada nuca (para se virar) e de cada polegar (para servir de toalha) são constantes, me parece, mas as lágrimas secam e quem anda na rua nem sempre vai para o mesmo lugar. Polegares e nucas precisam ser mais rápidos na hora de secar lágrimas e olhar para trás, antes que as lágrimas evaporem e chovam novas dores em cima de quem não se ofereceu para arriscar-se a guardá-las nas veias, antes que quem anda atrás se canse, ou se distraia com um outro pedestre. Olhe pra trás enquanto quem importa ainda está aqui.